Família é uma construção socioafetiva, ou seja, a parentalidade está muito mais relacionada à convivência e ao afeto do que à origem biológica. A filiação se constrói no convívio cotidiano.
Há casos em que as esferas biológicas e jurídicas coincidem, mas não há nenhum vínculo formado entre pais e filhos. O pai (ou mãe), apesar de constar no registro civil do filho, não exerce a função parental, deserta de seus deveres abandonando o filho. Nesse caso, embora exista filiação registral, não há o exercício da função parental, sendo necessário analisar a delicada questão do abandono do filho e como esse fato repercute na obrigação alimentar.
Para o filho é certo que o abandono traz danos e traumas diversos, tanto o abandono material, haja vista a impossibilidade física e legal para o trabalho (além da condição especial de pessoa em desenvolvimento), quanto o intelectual e afetivo, haja vista ser na família que o indivíduo encontra amparo para sua sobrevivência, formação e estruturação psíquica.
Casos reais… como a Justiça decidiu?
O juiz Cléber de Castro Cruz, titular da 16ª Vara de Família de Fortaleza, negou pedido de um idoso que ingressou na Justiça para receber pensão alimentícia dos três filhos. E assim justificou sua decisão:
“Não tendo o autor da causa sido pai de seus filhos para dar-lhes amor e afeição, e nem mesmo para auxiliar-lhes materialmente, quando da sua assistência os filhos ainda necessitavam, não se mostra justo, nem jurídico, que agora busque se valer da condição paterna apenas para impor-lhes obrigações”.
Para os desembargadores da 2ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), “é descabida a fixação de alimentos em benefício de genitor que nunca cumpriu com os deveres inerentes ao poder familiar. Não pode, agora, valer-se apenas da relação de parentesco para postular algo que nunca ofereceu nem mesmo moralmente aos filhos”.
Nesse mesmo sentido, já se posicionou a Justiça brasileira em casos análogos:
(…) É descabida a fixação de alimentos em benefício do genitor que nunca cumpriu os deveres inerentes ao poder familiar, deixando de prestar aos filhos os cuidados e o afeto de que necessitavam durante o seu desenvolvimento. (Tribunal de Justiça do RS).
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O QUE DIZ A LEI?
Iniciemos pela Constituição brasileira que nos informa que: “Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade” (artigo 229, CF).
Os advogados e juízes conhecem isso como “princípio da solidariedade familiar”. Mas solidariedade é uma via de mão dupla. Pode um pai ou mãe que não cumpriu com seus deveres constitucionais exigir que os filhos cumpram os seus?
O Princípio da Solidariedade Familiar só pode ser legitimamente invocado pelo pai ou mãe que sempre prestou assistência aos filhos, não faltando com o dever advindo do poder familiar e nem com a obrigação de cuidado.
“Merecer solidariedade implica em também ser solidário.”
Como visto a Constituição estabelece que a obrigação seja recíproca entre pais e filhos. Contudo, se não houve reciprocidade do pai ou mãe para com seus filhos, não merece respaldo a intenção dos pais de impor o dever aos filhos de lhes pagar pensão alimentícia.
O abandono fere o princípio basilar constitucional: a dignidade humana do filho, pois o priva do amparo material, moral, afetivo e por ferir o cerne do direito, fere todos os que dele derivam e se relacionam: a afetividade, a solidariedade familiar, a igualdade, a reciprocidade, o melhor interesse da criança, a convivência familiar, a paternidade responsável, a proteção integral e a absoluta prioridade, mas além disso, há disposições específicas no ordenamento que penalizam aqueles que desertam da função parental, mediante sanções civis ou penais.
Casos reais… como a Justiça decidiu?
O Tribunal de Justiça do Distrito Federal, em um recurso, assim se manifestou:
“O dever dos filhos de prestar alimentos aos pais na velhice fundamenta-se não só no vínculo de parentesco como no princípio da solidariedade familiar. Não tendo a genitora mantido qualquer contato, financeiro ou afetivo, com os filhos por mais de quatro décadas, não pode, agora, valer-se apenas da relação de parentesco para postular algo que nunca ofereceu nem mesmo moralmente aos filhos.”
Um outro caso foi assim sentenciado:
“Ora, se a genitora, durante toda a infância e juventude dos filhos, não cumpriu com os seus deveres de sustento, guarda e educação, assim como deixou de prestar-lhes atenção e afeto, não pode, agora, invocar a solidariedade familiar em seu benefício, porquanto não seria justo impor aos filhos o que a mesma lhes negou a vida inteira.”.
O que é uma “pensão alimentícia”? Ou, o que são “alimentos”?
Os alimentos são prestações dadas por uma pessoa a outra com a finalidade de satisfazer necessidades vitais para sua sobrevivência, quando aquele que os recebe não tem condições de, por seu próprio esforço, obtê-los. São devidos em razão de relações de parentesco por consanguinidade ou afinidade. Abrangem o indispensável ao sustento, vestuário, habitação, assistência médica e instrução (artigo 1.920, CC).
A pensão alimentícia é devida quando quem pretende recebê-la não tem bens suficientes, nem pode prover, pelo seu trabalho, à própria mantença, e aquele, de quem se reclamam, pode fornecê-los, sem desfalque do necessário ao seu sustento (artigo 1.695, CC).
Vamos analisar, detalhadamente, os requisitos para que uma pensão alimentícia seja devida:
1. deve existir vínculo de parentesco entre as partes – ascendente, descendente, colateral até segundo grau;
2. o idoso que está pedindo alimentos deve ter uma real necessidade de recebe-los – ausência de recursos próprios e impossibilidade de obtê-los por seus próprios esforços;
Observação: a Justiça já se pronunciou no sentido de que quem recebe benefício da assistência social (LOAS), ou mesmo aposentadoria por invalidez previdenciária, mesmo que no valor bruto de R$ 986,66, não comprovaram a necessidade de receber alimentos.
3. os filhos devem ter condições de pagarem a pensão;
4. o valor da pensão deve ser proporcional a necessidade do idoso e a possibilidade do filho.
Casos reais… como a Justiça decidiu?
Em decisão unânime a Justiça assim se pronunciou:
“O autor nunca exerceu seu papel de pai, seja mediante prestações materiais, seja mediante apoio emocional. Nessa linha, segundo a sentença, a solidariedade familiar não pode ser invocada por aquele que nunca foi solidário com os filhos, tendo falhado em seus deveres de sustento, guarda e educação, deixando de prestar-lhes atenção e afeto”.
Mesmo que caracterizada a necessidade da autora/apelante ao recebimento de alimentos, não subsiste, na excepcionalidade do caso, há mais de 40 anos, diante do comportamento reprovável da própria apelante (que é mãe da apelada e a abandonou) qualquer vínculo afetivo para amparar o dever de solidariedade entre as litigantes, de forma que descabida seria a condenação da apelada ao pagamento de pensão em prol da apelante. (Tribunal de Justiça do RS)
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O parágrafo único do artigo 1.708 do Código Civil estabelece que “a obrigação alimentícia cessa se houver por parte do credor procedimento indigno em relação ao devedor”.
Explicando: (1) o “credor”, sob o tema que estamos tratando, é o idoso que está pedindo pensão; (2) o “devedor” é filho que, se condenado, terá que pagar pensão ao idoso. Mas o que seria o tal “procedimento indigno”?
Constituem procedimento indigno de pai em relação a seus filhos as situações elencadas na Lei Civil por descumprimento aos deveres inerentes à paternidade (artigo 22, do ECA), dentre eles o abandono, material ou afetivo (artigo 1.638, CC). Tais situações amparam a recusa à prestação alimentar de filhos em relação a seus pais.
O Código Civil de 2002 (art. 1.634) assegura aos filhos os direitos advindos do poder familiar: sustento, guarda, educação, companhia. A cada direito assegurado pelo sistema, equivale a um dever dos pais, albergado pelos princípios do sistema, que esvaziados configuram conduta indigna perpetrado pelo pai ou mãe que abandona.
Casos reais… como a Justiça decidiu?
Foi a julgamento o caso de um idoso que alegou para requerer pensão de seus filhos, ser portador do vírus HIV e não ter trabalho fixo. E a Justiça assim se pronunciou:
“O idoso não demostrou necessidade de receber alimentos, porque no atual estágio da medicina, o vírus HIV não é justificativa para invalidez, inclusive com os órgãos de saúde concedendo pleno amparo médico e psicológico aos doentes”.
Vejamos outro julgado no mesmo sentido:
A solidariedade familiar não é absoluta, na hipótese de o pai ter se afastado da família e dos filhos, quando estes contavam apenas dois anos de idade, sem prestar-lhes qualquer tipo de assistência emocional, afetiva, financeira ou educacional, e, após três décadas, reaproximar-se deles para pleitear alimentos. “O mero fato de ser portador do vírus HIV não é por si só incapacitante, sendo controlável, bastando que a pessoa tome a medicação e observe uma vida regrada.” (TJRS).
CONFLITO DE NORMAS: ECA (ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE) versus ESTATUTO DO IDOSO
O artigo 3º do ECA estabelece que: “A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.”.
Será que pais que abandonaram seus filhos, deixando de cumprir seu dever legal podem agora, velhos, exigirem que seus filhos dêem cumprimento ao dever que lhes seria imposto por outra lei (Estatuto do Idoso)?
COMO OS LIVROS TRATAM DESSA QUESTÃO?
Sobre a solidariedade familiar, Maria Berenice Dias defende que:
(…) Ainda que exista o dever de solidariedade da obrigação alimentar a reciprocidade só é invocável respeitando um aspecto ético. Assim, o pai que deixou de cumprir com os deveres inerentes ao poder familiar não pode invocar a reciprocidade da obrigação alimentar para pleitear alimentos dos filhos quando atingirem eles a maioridade. Expressamente a lei autoriza a cessação do direito a alimentos quando o credor tem um procedimento indigno para com o devedor (CC 1.708, parágrafo único). Às claras que o dispositivo não diz somente com o agir indevido dos filhos. Também o pai que age indignamente – por abandono ou por abusar dos filhos – não tem legitimidade para pedir alimentos. (…) (DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 8. ed. São Paulo: Revistados Tribunais, 2011, p. 518 – grifos nossos).
Para a autora, não só é possível exonerar a prestação alimentar do filho em relação ao pai (ou mãe), como é ilegítimo ao pai (ou mãe) o pedido de alimentos em face do filho que negligenciou.
Ainda a esse respeito, Roberto Gonçalves assim se pronuncia:
(…) Já se decidiu que não tem direito de pedir alimentos aos filhos o pai que, embora alegando idade avançada e desemprego e invocando o dever de solidariedade familiar, comprovadamente abandonou a família, sem manter com ela qualquer contato por mais de dezoito anos. Salientou-se que tal dever é uma vida de mão dupla, ou seja, “merecer solidariedade implica também ser solidário (…) (FILHO, Roberto Gonçalves. Direito Civil Brasileiro – Direito de Família. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 546 – grifos nossos).
Rolf Madaleno (2013, p. 1027) assim também compreende:
Por último, cabe mais uma reflexão, no sentido de ser considerado como indigno igualmente o comportamento daquele genitor que durante a infância e adolescência de seus filhos sempre se manteve alheio, distante, indiferente e até mesmo hostil, (…) este genitor busca de seus filhos que nunca amou um vínculo judicial de alimentos que assegurem sua velhice e indigência, mas que certamente não são devidos por todo seu histórico de uma conduta desordenada e reprovável, indigna de qualquer liame alimentar.(…) não eximindo o indigno o fato de um terceiro ter prestado o auxílio alimentar em seu lugar. Em realidade estas são causas que servem para evitar o nascimento do direito alimentar.
Para o autor, o comportamento do pai (ou mãe) que abandona seu filho configura um comportamento indigno que, pura e simplesmente, evita o nascimento do direito alimentar, ou seja, que ilegitima o demandante genitor – ante a obrigação alimentar em face do filho, tornando o pedido improcedente, por essa conduta indigna refletir no procedimento indigno.
Alves (2006, p. 21), nesse sentido preleciona:
Questão interessante aqui se coloca, no caso do pai indigno que abandonou o filho, no berço das origens de sua existência e ao, depois, quando o filho alcança notoriedade pessoal e riqueza, reclama para si a assistência material que ele, a seu turno, negou ao infante infortunado. (…) Agora, a dicção legal mais recente do parágrafo único do art. 1.708, torna ineficaz o vínculo parental, sempre que privado esteja o credor dos alimentos, por indignidade, de reclamá-los ou merecê-los prestados.
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O QUE É CONDUTA INDIGNA?
Há indignidade da conduta no caso de pais que abandonam as funções parentais deliberadamente, negligenciando seus filhos, visto a indignidade ser prática contra a dignidade do outro e a obrigação alimentar obedecer a um caráter ético nas relações familiares. Todo o ordenamento jurídico, desde o seu topo, com a Constituição Federal de 1988, até os ramos do Direito Penal e Direito Civil, prescrevem deveres aos pais em relação a seus filhos, penalizando condutas de abandono imotivado desses deveres.
A deserção das funções parentais, o esvaziamento de direitos dos filhos, é conduta indigna, portanto, sendo possível essa interpretação como procedimento indigno em alimentos, caso haja a pretensão por parte dos pais desertores, capaz de exonerar a obrigação alimentar, ou minorá-la, a depender o caso e até mesmo ilegitimar o pedido, extinguindo o próprio direito material.
Casos reais… como a Justiça decidiu?
Resta evidente que a autora jamais se dispôs a cuidar do réu, tendo abdicado da convivência com o filho ainda pequeno para constituir outra família, desprovendo o infante do salutar amparo afetivo materno, conduta esta que, a nosso ver, caracteriza procedimento indigno, a atrair a incidência do disposto no art. 1.708, parágrafo único, do Código Civil, o qual desonera o devedor do encargo alimentar que, em princípio, teria em relação a sua genitora […]. 8) Provimento do recurso. (TJRJ)
EXISTE ABANDONO DE PAIS AUSENTES?
O que acontece se os pais idosos que pedem alimentos nunca fizeram parte da vida dos filhos, tendo-os abandonado durante toda a sua existência, privando-os de amor e cuidado?
Respire fundo… leia com atenção… e acompanhe o raciocínio.
Segundo o dicionário abandono é “ato ou efeito de largar, de sair sem a intenção de voltar; afastamento. ”
Dai surgem, naturalmente, duas questões:
Como se afastar daquilo que não está, ou nunca esteve por perto? Como abandonar pais ausentes?
A resposta é: isso é impossível! Não há como abandonar alguém que, há anos, se afastou por vontade própria.
Em resumo, existindo um Abandono Afetivo Prévio (ficar demonstrado que o pai ou mãe abandonou seus filhos), não há que se falar em Abandono Afetivo Inverso (filho abandonar seus pais).
CONCLUSÃO
O dever dos pais na educação de seus filhos não está limitado a quesitos financeiros, engloba também amor, afeto, carinho, aconselhamentos… isso qualquer um pode fornecer independentemente de ser pobre ou miserável. A falta desses pode causar danos psíquicos irreparáveis na vida dos filhos.
Portanto, respondendo à pergunta do título, não há obrigação incondicional dos filhos sustentarem seus pais na velhice. A obrigação alimentar somente se configura, de filhos para pais, se comprovada a necessidade dos pais (além da ausência de recursos próprios e da, a impossibilidade comprovada de obtê-los por esforço próprio) e a possibilidade dos filhos, sem prejuízo de seu próprio sustento, além de estar presente na convivência das partes envolvidas a “solidariedade familiar”.
E aí, como você entendeu que pais ausentes não tem direito a cobrar pensão alimentícia de seus filhos? Encontrou a solução que se encaixa perfeitamente ao seu caso específico ao longo do texto? Comente e compartilhe o seu comentário!
AUTOR:
Cristiano Nunes Gonçalves
Pós-Graduado em Direito. ADVOGADO. Doutor em Agronomia. ENGENHEIRO Agrônomo. PROFESSOR. ANALISTA em Ciência e Tecnologia Sênior.
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